
FALA, PRÉDIO DA REITORIA!
Enéas Valle
Fala, Prédio da Reitoria!
​
Tu, que já foste tupinambá, prêmio na IV Bienal de São Paulo pela tua antropofagia cultural, tu! foste degradado a tupinibunda e nos últimos tempos até – dizem os maledicentes – a tupinibundassuja!
​
Não foste batizado de “Palácio Universitário”? Não foste concebido para ser sede da rebelde Faculdade Nacional de Arquitetura da Universidade do Brasil, nascida de um racha criado por Lúcio Costa na Escola Nacional de Belas Artes no início dos anos 30 do séc. 20, quando o genial arquiteto e urbanista foi diretor da hoje bicentenária Escola criada pela Missão Francesa em 1816?
​
Jorge Machado Moreira, ou JMM, assim chamava-se o arquiteto que te concebeu, Prédio da Reitoria. Depois que pegaste fogo em 2016, justamente no 8º andar das Pro-Reitorias, na calada de uma noite misteriosa, oficialmente foste rebatizado para homenagear teu criador. Por decreto viraste, então, o Prédio JMM, mas o povo, constituído de estudantes de todas as classes sociais, continua a te chamar de Prédio da Reitoria.
​
​
​
​
​
​
(Corredor do Salão Azul, UFRJ)
Por que te concebeu o arquiteto assim tão grande, Prédio da Reitoria? Tens dois blocos típicos do Modernismo de um século atrás: um bloco de seis andares, sobre pilotis, que JMM concebeu para ser o bloco-escola, destinando um andar para cada ano da graduação, mais um andar para a pós-graduação em Arquitetura; e um segundo bloco, de dois andares, que se espalha horizontalmente e foi projetado com mezanino, biblioteca, museu, galeria de arte, jardim interno, pequenos auditórios, cineteatro, quadra coberta de esporte, restaurante, cantina e oficinas, além de um suntuoso complexo administrativo ocupado pelo Reitor, com escritórios, salão de espera com cadeiras Barcelona e estátuas de bronze, além de salão de reunião de conselheiros, tudo emoldurado por um jardim concebido pelo maior paisagista do século XX, Burle Marx.
HAPPY HOUR – Escultura em bronze –
Romantismo tardio – séc. 20 – Prédio da Reitoria
​
​
Vê-se, Prédio da Reitoria, que foste concebido para abrigar o sonho de futuro que começava a se construir no Brasil em fase de industrialização! És parte do projeto que criou Brasília e trouxe as montadoras de automóveis para São Paulo, gerando rodovias por toda parte, que enfim integraram, bem ou mal, todo o território nacional conquistado dos indígenas a muita trepada com índia e muita bala de canhão, arcabuz, fuzil e revólver.
​
Nasceste na prancheta de Jorge Machado Moreira como uma das obras principais da Cidade Universitária, comparável apenas ao descomunal Hospital Universitário, no outro extremo da Ilha do Fundão. Fruto do sonho ideal de um Rio de Janeiro capital do Brasil agrícola, maior país exportador de café do mundo, foste projetado e construído sem a indispensável escada de incêndio! No mundo real, porém, catástrofes acontecem, e tu, Prédio da Reitoria, sofreste alagamentos e incêndios, sempre à noite ou na calada da madrugada, certamente porque Deus é brasileiro!
​
​
​
​
​
​
MULATA DESPIDA, também conhecida como FUNCIONÁRIA DESPIDA –
Realismo Coubertiano tardio – Prédio da Reitoria
​
​
Enquanto estavas sendo gerado na prancheta de JMM, Lúcio Costa e Oscar Niemeyer desenhavam Brasília. Ao mesmo tempo, Darcy Ribeiro projetava para a futura capital brasileira um novo tipo de universidade, com um tipo de campus como só existia na Califórnia. A orgulhosa Universidade do Brasil, apesar de degradada no rank simbólico para Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, não deixaria, porém, a Cidade Maravilhosa ficar para trás em termos de campus! A Cidade Universitária de JMM seria, no Rio de Janeiro, um campus como o de Oscar Niemeyer em Brasília!
​
Qual o quê!!!
​
Quem contava com o Golpe Militar de 1964? Congresso Nacional fechado? Presidente Jango exilado? Expulsão de 200 professores da UnB?
​
Em 1968, o estudante Edson Luís foi assassinado pela Ditadura Militar no restaurante estudantil Calabouço, no centro do Rio de Janeiro. A UNE – União Nacional dos Estudantes – e a UBES – União Brasileira dos Estudantes Secundaristas – que eram até então entidades nacionais poderosas, mobilizaram os estudantes de todo o país para a luta contra a Ditadura. Na Ilha do Fundão, centenas de estudantes lotaram as assembleias realizadas na quadra coberta de esportes do Palácio Universitário.
​
Em dezembro de 1968, o regime editou o Ato Institucional nº 5 e trouxe o Brasil de volta à época da Inquisição Católica, ao tempo anterior à chegada de D. João VI ao Rio de Janeiro. A UNE e a UBES foram fechadas, aniquiladas, toda e qualquer reunião estudantil tornou-se subversão passível de prisão imediata, as repúblicas estudantis foram criminalizadas como bocas de fumo ou aparelhos da subversão comunista e a universidade brasileira, coitada, teve que se adaptar aos anos de chumbo que se seguiram, igualando matriarcalmente estudante a aluno e proibindo patriarcalmente qualquer atividade estudantil além da sala de aula e da banca de exame.
​
E tu, Palácio Universitário, desenhado por Jorge Moreira Machado para coroar projeto similar ao da UnB, tiveste o azar de ser inaugurado em 1961, às vésperas do Golpe Militar. Serias sede ideal de uma faculdade de arquitetura digna de uma metrópole industrial pós 2a Guerra Mundial, mas te tornaste em verdade sede típica de uma repartição pública de uma metrópole tropical da era colonial.
​
Utópico JMM! Planejou dez estudantes por sala de aula prática ou teórica, mas que horror, miserável Prédio da Reitoria! Foste invadido e entupido com a Reitoria e suas Sub-Reitorias, rebatizadas posteriormente de Pró-Reitorias, mais a Decania do Centro de Letras e Artes, sem esquecer a Faculdade Nacional de Arquitetura, que virou Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e, finalmente ainda tiveste que engolir a decadente Escola Nacional de Belas Artes, que tinha sede própria na Avenida Rio Branco, ao lado do Teatro Municipal e da Biblioteca Nacional, mas foi obrigada a se mudar às pressas em 1976 para tuas salas, trazendo consigo o que preservava do ensino neoclássico de Pintura, Escultura e Gravura da Academia Imperial de Belas Artes. Isso incluía inúmeras cópias diretas de estátuas greco-romanas providenciadas por Pedro II, além de vitrines com esqueletos e animais empalhados, cavaletes para telas de todos os tamanhos e ácidos para a produção de gravação em metal. Foi o caos, que jamais cessou e continua até hoje!
​
Teu labirinto de corredores quilométricos guarda a tua história de degradação, Prédio da Reitoria, que é também a história da degradação do estudante brasileiro pelo AI-5 há exatos 50 anos atrás. Na década de 70, os jovens aprenderam na porrada (“e aí bicho?”) que, para estudante, “dançar” significava “levar porrada”, “ser torturado”. Tempo de paranoia. O Brasil tinha entrado em revolução política, que não é outra coisa senão guerra civil. No caso era só uma guerrinha, guerrilha, mas três playboys não tinham derrotado o exército cubano usando a tática da guerrilha? No Vietnã, a guerrilha de uma nação de camponeses não estava vencendo a maior potência militar do planeta? Para os militares brasileiros, o surgimento da guerrilha urbana confundiu-se com o movimento estudantil e estudante politicamente ativo, participativo, virou inimigo do Estado.
​
​
​
​
​
​
Nada de festa no campus! Nada de cinema! Nada de teatro! Nada de música!
Só aula, banca examinadora e palestra de político ou celebridade.
​
Qual o papel do estudante no Salão Azul, oficialmente Sala Samira Mesquita?
​
​
​
No Salão Azul o palco foi reduzido à monofunção de exercício da autoridade,
onde cabe ao estudante autocensurado (aluno) bater palmas.
​
​
Rio de Janeiro, agosto de 2018.
Enéas de Medeiros Valle, Dr. em Comunicação e Cultura.
​
​
LAÉRCIO
Pedro Henrique Bravo
Era o nome do botequim que eu e meus amigos frequentávamos nos tempos de colégio. Na verdade, o nome era Canibal. Mesmo que não estivesse escrito em lugar algum, era assim que o bar se chamava. Laércio era o nome que estava tatuado no braço do garçom que nos atendia. Gordo, alto e ruivo, não por acaso apresentou-se como Laércio. Pé sujo de primeira categoria, o botequim era frequentado por putas, pedreiros e nós. As mesas, de plástico, contavam com queimaduras de cigarro e jogos publicitários. Seu teto era exatamente o piso do andar de cima, na época um bordel.
​
No Laércio não havia televisão, nem mictório, nem ar condicionado. Havia um radinho de pilha, um ventilador capenga e no lugar do mictório, havia um pedaço de papelão com um par de limões em cima. Para meus amigos e eu, o importante era que a cerveja fosse barata. E era. Extraordinariamente barata. Como não se encontra em qualquer outro lugar do Rio, da Zona Sul a Zona Norte. Assim conhecemos o melhor ponto para se ir tomar cerveja no Centro da Cidade: um lugar onde podíamos beber a vontade, falar alto, cuspir no chão, e ser menores de idade.
​
​
​
Começamos a frequentar e em dois meses éramos clientes assíduos. Todo Sábado estávamos lá, desde a hora do almoço até o anoitecer. Vimos o Laércio se transformar e o Laércio nos viu crescer. Em seis meses o ventilador capenga foi substituído por um ar condicionado. Depois, colocaram um rebaixamento de gesso no teto e, nas paredes, grandes televisões de plasma. Após um ano desde que começamos a frequentar, substituíram até as mesas de plástico vermelhas e amarelas por mesas de madeira. Os limões que ficavam em cima do pedaço de papelão no banheiro, já estavam posicionados sobre os novos mictórios que haviam sido recentemente instalados. Os copos, que eram descartáveis, foram substituídos por copos de vidro, americanos. Meus amigos e eu sabíamos que era a gente que estava financiando aquelas mudanças. Bebíamos muito e o bar com certeza ganhava um bom dinheiro às nossas custas. Achamos graça e primeiramente, não nos incomodou. Até que então os preços começaram a subir.
​
Foi um susto. Percebemos quando um dia pedimos a conta e o valor veio quase duas vezes mais caro do que costumávamos pagar. Pedimos pro Laércio reavaliar e dissemos que aquilo não era possível. Mas era.
Ficamos um pouco perplexos e levemente desorientados. Mas de qualquer forma, não era um absurdo que não fôssemos capazes de bancar. Por questões de nostalgia e comodismo, continuamos a ir ao Laércio e o bar continuou lucrando. Aquele espaço era muito mais do que um bar. Era um lar! Não queríamos deixá-lo.
​
Aconteceu foi que os preços não pararam de crescer. Há muito já não eram mais putas e pedreiros que compunham a clientela do estabelecimento. Na verdade, o dono do Canibal comprou o bordel e estendeu o bar para o andar de cima. A essa altura, o local atraía jovens metidos a intelectuais anarcohippies, velhos que se autodeclamavam filósofos e artistas plásticos sustentados pela avó. Deixou de ser o boteco que eu e meus amigos conhecíamos. Em pouco tempo, tornou-se o que é hoje: de um botequim cospe-grosso a um dos restaurantes mais conceituados da cidade. Conta com prêmios gastronômicos e altas classificações em revistas gourmets. Mudou de nome para Les Anthropophages. Laércio não trabalha mais lá. Meus amigos e eu, os responsáveis pela tragédia, ainda estamos a procura de outro boteco para chamar de nosso.
​
​
Rio de Janeiro, junho de 2017.
Pedro Henrique de Matos Pinto Bravo, estudante de Design de Produto na UFRJ.
​
​







